O Intrigante Universo das Revisões Tarifárias Extraordinárias (RTEs)

 Os principais grupos do setor elétrico divulgaram recentemente suas demonstrações financeiras, referentes ao terceiro trimestre de 2024, e dentre os diversos destaques apresentados, ganharam os holofotes os ajustes de mais valia decorrentes dos processos de Revisão Tarifária Periódica (RTP) e Reajuste Tarifário Anual (RTA), que já conversamos anteriormente por aqui. No entanto, um elemento peculiar chama mais atenção ainda: os impactos das Revisões Tarifárias Extraordinárias (RTEs).

 

As RTEs não são apenas ajustes esporádicos; são verdadeiros pontos de inflexão onde os meandros regulatórios se misturam com a contabilidade societária. Aqui, a engenharia financeira e regulatória revela sua face mais complexa: de um lado, as normas que garantem a estabilidade econômica das distribuidoras; de outro, os balanços que refletem o impacto dessas decisões no desempenho financeiro.

 

Vamos explorar juntos o que são as RTEs e porque elas são tão importantes, especialmente em momentos de crise. Vamos desvendar os fundamentos técnicos e regulatórios que sustentam essas revisões, ilustrando com casos históricos que moldaram o setor. Além disso, discutiremos os sinais do presente que podem apontar para futuras RTEs, explorando como crises e mudanças estruturais podem acionar esse mecanismo regulatório crítico.

 

Imagine que sua conta de luz precisa de um ajuste urgente por causa de um imprevisto, como uma forte crise econômica. É exatamente para isso que as RTEs existem. As Revisões Tarifárias Extraordinárias (RTEs) são mecanismos regulatórios, que tem como finalidade restabelecer a saúde equilíbrio econômico-financeiro das concessionárias de distribuição de energia elétrica. Sua aplicação está claramente descrita no Submódulo 2.9 do PRORET​.


Você já se perguntou como as distribuidoras lidam com crises financeiras? É aí que entram as RTEs. Diferentemente das Revisões Tarifárias Periódicas (RTPs), que seguem um calendário fixo e preestabelecido tanto no próprio PRORET quanto nos contratos de concessão, as RTEs são acionadas apenas em situações extraordinárias, quando eventos fora do padrão impactam significativamente a saúde financeira das concessionárias​ e, habitualmente, solicitadas pelos detentores das áreas de concessão.

 

As RTEs, detalhadas no Submódulo 2.9 do PRORET, são um importante mecanismo para ajustes tarifários em situações excepcionais. As situações incluem, mas não se limitam à:

  • Variações Abruptas no Mercado: Eventos inesperados que afetam significativamente o consumo e a receita, como mudanças estruturais no mercado​.
  • Crises Econômicas ou Políticas: Fatores externos, como pandemias ou crises econômicas, que alteram drasticamente os custos operacionais e financeiros das concessionárias​.
  • Mudanças Regulatórias Significativas: Alterações nas normas regulatórias que impliquem em custos adicionais ou mudanças substanciais nas condições operacionais​.
  • Fatores Externos Não Controláveis: Crises climáticas, como secas extremas ou eventos climáticos severos, que impactam os custos de operação​.

Para melhor contextualizar podemos entender que as RTPs (Revisão Tarifária Periódica) são processos regulares que ocorrem a cada 4 ou 5 anos, a depender do contrato de concessão e ajustam tarifas com base na eficiência e investimentos das distribuidoras. As RTAs (Reajuste Tarifário Anual) correção anual das tarifas considerando variações em componentes como o custo da energia, e as RTE (Revisão Tarifária Extraordinária) referem-se à revisão pontual e emergencial, detalhada no Submódulo 2.9 do PRORET, para ajustar as tarifas em resposta a eventos excepcionais​.

 

Para a solicitação e aceite de uma Revisão Tarifária Extraordinária (RTE), a concessionária deve comprovar para a ANEEL — Agência Nacional de Energia Elétrica - uma série de requisitos estabelecidos no, já referido, Submódulo 2.9 do PRORET. Esses critérios garantem que o processo seja utilizado apenas em situações legítimas e justificadas, evitando o uso inadequado desse mecanismo. Os principais requisitos são:

  1. Fato Gerador: Deve haver um evento concreto e extraordinário que justifique a revisão.
  2. Comprovação de Desequilíbrio Econômico-Financeiro: A concessionária deve demonstrar, por meio de documentos contábeis e regulatórios, que o fato gerador que resultou em um desequilíbrio significativo, comprometendo a sustentabilidade do serviço​.
  3. Nexo de Causalidade: É necessário comprovar que o desequilíbrio econômico-financeiro foi diretamente causado pelo evento apontado​. Além disso, a concessionária deve apresentar as ações que já adotou para mitigar o impacto.

Exclusões:

Pedidos de RTE não serão admitidos se:

  • Ineficiências Empresariais: Desequilíbrios decorrentes de falhas internas de gestão ou ineficiências não são passíveis de revisão​.
  • Alterações Metodológicas: Mudanças metodológicas que ainda não foram refletidas nos cálculos tarifários não justificam um pedido de RTE​.

 

O processo de análise de um pedido de RTE realizado pela ANEEL é rigoroso e estruturado para garantir transparência e justiça no tratamento das solicitações. Este método de análise percorre as seguintes etapas:

  1. Documentação Exigida e Prazos: A concessionária deve apresentar uma série de documentos, incluindo:
    • Relatórios financeiros e operacionais detalhados.
    • Evidências do fato gerador e do desequilíbrio econômico-financeiro.
    • Provas das ações mitigadoras adotadas​.

Os prazos para submissão de pedidos estão claramente definidos no PRORET:

    • 4 meses antes do próximo processo tarifário para desequilíbrios relacionados à Parcela A.
    • 6 meses antes para desequilíbrios que envolvam a Parcela B​.
  1. Envolvimento do Conselho de Consumidores: A ANEEL exige que o conselho de consumidores seja informado e tenha a oportunidade de se manifestar sobre o pedido, garantindo transparência e participação social​.

 

Para que uma Revisão Tarifária Extraordinária (RTE) seja aprovada, a concessionária deve comprovar desequilíbrio econômico-financeiro por meio do descumprimento de uma das duas inequações previstas no Submódulo 2.9 do PRORET. Essas inequações avaliam a saúde financeira da concessionária considerando parâmetros regulatórios e operacionais.

 

Primeira Inequação




Onde, 

  • DívidaReg: É a participação regulatória do capital de terceiros, calculada com base na soma da Base de Remuneração Líquida (BRL) e da Base de Anuidade Regulatória Líquida (BARL), ajustada por efeitos como Obrigações Especiais e saldo da RGR.
  • DPA (Desequilíbrio de Parcela A) e GEXT (Gasto Extraordinário de Parcela B): Representam despesas excepcionais que impactam diretamente os custos regulatórios da concessionária.
  • LAJIDAReg: Refere-se à geração de caixa regulatória (Lucro Antes de Juros, Impostos, Depreciação e Amortização regulatórios) com base nas tarifas vigentes e no mercado faturado nos 12 meses anteriores.

 

Essa inequação mede a capacidade da concessionária de gerar caixa suficiente para cobrir suas obrigações regulatórias. Quando o quociente ultrapassa o limite de 4, indica que a concessionária tende à não conseguir manter a sustentabilidade financeira necessária, evidenciando o desequilíbrio econômico-financeiro.

 

Segunda Inequação



Onde,

  • RCReg: Remuneração do Capital Regulatória, calculada com base na Tarifa de Fio B vigente, que reflete os retornos necessários para remunerar os ativos regulatórios.
  • SELIC: Taxa média acumulada, usada como referência para os custos financeiros.

 

Esta inequação avalia se a RCReg é suficiente para cobrir os custos financeiros ajustados pela SELIC. O objetivo é garantir que a concessionária tenha capacidade de remunerar o capital investido, mesmo considerando gastos extraordinários. Caso essa inequação seja descumprida, fica evidenciado que os retornos têm uma tendencia não são suficientes para cobrir os custos financeiros mínimos.

 

Ambas as inequações têm o objetivo de avaliar se a concessionária possui um fluxo de caixa suficiente para garantir a continuidade do serviço e o equilíbrio econômico-financeiro. O descumprimento de qualquer uma delas justifica o acionamento de uma RTE, permitindo a correção tarifária necessária para recuperar a estabilidade financeira. Essas ferramentas fornecem à ANEEL uma base objetiva para avaliar os pedidos de revisão, assegurando que as solicitações sejam fundamentadas em parâmetros técnicos sólidos e transparência.

 

Agora que entendemos os critérios técnicos que sustentam as RTEs, vejamos como isso se aplicou em casos reais do setor. No processo de privatização de distribuidoras da Eletrobras o edital de privatização já previa que os novos controladores possuíam a prerrogativa de realizar RTEs antes das efetivas RTPs (Revisões Tarifárias Periódicas). Estes processos trouxeram uma série de desafios regulatórios. As empresas, ao serem transferidas para controle privado, enfrentaram a necessidade de equilibrar suas finanças, ajustar sua operação a novos níveis de eficiência e absorver custos operacionais e de investimentos previamente não tratados nas tarifas.

 

Esse contexto gerou pedidos de Revisões Tarifárias Extraordinárias (RTEs) onde as empresas justificaram esses pleitos com base em desequilíbrios econômicos e financeiros resultantes de ajustes nos contratos, dívidas regulatórias acumuladas e investimentos urgentes para melhoria da qualidade do serviço, incluindo ajustes para atingir as metas de qualidade previstas pela Aneel.

 

A ANEEL analisou cuidadosamente esses casos, respeitando integralmente as normas regulatórias, considerando o impacto das mudanças estruturais no mercado e os compromissos assumidos no momento da privatização. Essas RTEs resultaram em ajustes tarifários que visaram garantir a sustentabilidade financeira das distribuidoras, sem comprometer o equilíbrio econômico do setor e a modicidade tarifária.

 

A Medida Provisória 998/2020, transformada em lei em 2021, trouxe mudanças significativas para o setor elétrico, e impactou diretamente as concessionárias que tiveram suas RTEs aprovadas pela Aneel. Estas concessionárias possuam a possibilidade de ter parte dos seus valores de Base de Remuneração transitados para obrigações especiais – e por consequência redução da tarifa - em contrapartida tais valores poderiam ser ressarcidos oriundo de recursos da RGR. A Reserva Global de Reversão (RGR) é um fundo setorial criado no contexto do setor elétrico brasileiro, com o objetivo de financiar investimentos e outras obrigações associadas à prestação de serviços públicos de energia elétrica. Regulada pela ANEEL, a RGR desempenha um papel fundamental no equilíbrio econômico-financeiro do setor.

 

Essa medida afetou diretamente o cenário das RTEs, pois reconfigurou a forma como custos e encargos são reconhecidos entre os agentes do setor e os consumidores. Ao reduzir subsídios cruzados e alocar recursos de forma mais eficiente, a MP 998 efetivamente atingiu seu objetivo principal que foi a modicidade tarifária ao consumidor.

 

Os impactos das RTEs para o consumidor são diretos e percebidos nas contas de luz. Quando uma RTE é aprovada, as tarifas são ajustadas para refletir os custos extraordinários enfrentados pelas distribuidoras. Isso significa que, em momentos de crise, como a pandemia ou a crise hídrica, o consumidor pode perceber aumentos significativos nas tarifas.

 

No entanto, esses ajustes têm a finalidade de assegurar a continuidade do serviço e a qualidade da distribuição de energia. Para consumidores residenciais, comerciais e industriais, os impactos variam de acordo com os níveis tarifários e os subsídios setoriais aplicáveis.

 

Em contrapartida, a ANEEL e as concessionárias buscam equilibrar os ajustes tarifários com mecanismos que protejam o consumidor, como parcelamentos de custos ao longo do tempo e a utilização de fundos setoriais para mitigar aumentos abruptos. Isso reflete o compromisso

 

Frente a todas as informações apresentadas, podemos afirmar que as Revisões Tarifárias Extraordinárias (RTEs) são mecanismos regulatórios fundamentais para preservar a continuidade e a qualidade do serviço público de distribuição de energia elétrica. Elas servem como uma ferramenta de ajuste em momentos de desequilíbrio econômico-financeiro, assegurando que as concessionárias possam continuar operando de forma eficiente, mesmo diante de desafios excepcionais.

Sob a gestão da ANEEL, as RTEs são aplicadas com rigor técnico e transparência, sempre considerando os interesses dos consumidores e a sustentabilidade do setor. Este processo regulatório, embora complexo, reforça o compromisso com a modicidade tarifária e a eficiência operacional das concessionárias.

 

Convido todos a participar desta discussão. Compartilhem seus comentários, dúvidas, experiências profissionais ou situações relacionadas às RTEs. Meu objetivo é ampliar o debate sobre um tema tão relevante, que, embora técnico, tem impacto direto no cotidiano de todos nós.

 


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