Mercado Livre e BRR: como garantir justiça tarifária em um setor em transição?
Quando comecei a trabalhar no setor elétrico – e lá se vão mais de 10 anos – uma pergunta me incomodava: se estou numa empresa privada, por que não podemos simplesmente definir o preço do nosso serviço? Por que o Estado precisa se meter?
A resposta está na natureza da nossa atividade. A
distribuição de energia elétrica é um monopólio natural — e isso muda de forma
relevante a lógica de mercado que a maioria de nós aprendeu fora do setor.
Em atividades com custos de implantação e custos fixos muito
elevados, como construção e manutenção de redes de distribuição, e com retornos
marginais decrescentes, a competição se torna economicamente inviável. Ter duas
redes paralelas de fios, postes e transformadores atendendo o mesmo bairro
seria um disparate técnico, ambiental e financeiro.
É por isso que o Estado concede a uma empresa o direito
exclusivo de operar em uma área — o que chamamos de concessão pública. Mas esse
direito de exploração vem acompanhado de uma série de obrigações regulatórias e
técnicas: universalização do atendimento, manutenção da rede, cumprimento de
padrões de qualidade e equilíbrio econômico-financeiro.
Neste ponto destacamos a ação fundamental da ANEEL como
reguladora: garantir que esse arranjo funcione com justiça. Afinal, o
consumidor não pode escolher outro fornecedor de rede. Se não há mercado que
regule preço, precisa haver regulação. Sem isso, o risco é o concessionário
explorar poder econômico e de mercado para cobrar mais do que seria razoável
para um serviço essencial.
Este foi um dos primeiros ensinamentos que me despertaram
paixão pelo que faço: o setor elétrico é privado, sim — mas sua lógica é
pública. A busca constante por maximização de resultados precisa conviver com o
compromisso de prestar um serviço sob a ótica do bem comum.
Como já discuti em textos anteriores, a distribuidora de
energia desempenha também o papel de arrecadadora de uma série de componentes
que vão além do seu serviço direto (https://brunosoliveira.blogspot.com/2024/08/por-dentro-da-conta-de-luz-os-segredos.html).
Desde o processo de desverticalização do setor que ocorreu em 1990, o Brasil
adotou um modelo com responsabilidades nitidamente separadas em geração,
transmissão, distribuição e comercialização. Cada elo da cadeia tem riscos,
características operacionais e dinâmicas de receita distintas. Por isso, cada
um deles é regido por regras próprias e modelos regulatórios específicos.
Na prática, essa separação é refletida na conta de luz do
consumidor:
Geração: representa o custo da energia contratada pelas
distribuidoras.
Transmissão e Distribuição: refere-se ao uso da rede
elétrica (TUST e TUSD).
Encargos e Tributos: abrange políticas públicas setoriais e
a carga tributária.
Assim podemos resumir de forma simplista que a remuneração da concessionária vem da Parcela B – e neste valor estão os valores que definimos nos processos de RTP como, mas não apenas, a remuneração de capital (via Base de Remuneração Líquida) e quota de reintegração (via Base de Remuneração Bruta).
A Parcela A, por outro lado, passa direto pelas distribuidoras: cobre custos
com compra de energia, transporte e encargos setoriais, sem margem de lucro. É
aí que entra o papel da distribuidora como arrecadadora — e não como
beneficiária direta desses valores.
Diante de tantas camadas regulatórias no setor elétrico brasileiro, o Mercado
Livre de Energia surge como uma transformação estrutural — e inevitável. O
mercado livre é um ambiente em contraste com o mercado regulado, onde o
monopólio da distribuição impede o consumidor de escolher seu fornecedor de
energia.
Seu funcionamento básico ocorre conforme abaixo:
- Você
continua usando os mesmos fios e transformadores da distribuidora.
- Mas
contrata a energia com outro agente, que injeta a energia no Sistema
Interligado Nacional (SIN).
- O
Operador Nacional do Sistema (ONS) e a Câmara de Comercialização de
Energia Elétrica (CCEE) fazem a compensação contábil: você consome em um
ponto, e o gerador injeta em outro.
Seus maiores benefícios são relacionados à redução de custos
(10% a 30% em alguns casos), previsibilidade orçamentária, em muitos casos
energia renovável comprovada e acima de tudo flexibilidade contratual.
Não obstante este consumidor precisa conviver com riscos
relacionados à volatilidade do mercado, complexidade no processo de
contratação, necessidade de gestão ativa do volume de energia e, em muitos
casos, assimetria da informação.
Analisando a situação atual do Brasil cabe destacar a Portaria
MME nº 50/2022, que autorizou, a partir de janeiro de 2024, a migração de todos
os consumidores conectados em média e alta tensão (grupo A) para o mercado
livre. Em 2025, já observamos os efeitos concretos dessa mudança:
- Crescimento
exponencial no número de migrações (comercial e industrial);
- Crescimento
de comercializadoras e plataformas digitais de compra;
- Demanda
por consultorias e serviços de gestão energética.
Os próximos passos mapeados nesta discussão (e do conflito
regulatório) é a abertura para consumidores de baixa tensão (residenciais e
pequenos comércios), o que exigirá novo marco legal — e está sob análise no
Congresso.
A pergunta que fica é: estamos regulatóriamente prontos para
abrir o mercado a milhões de novos consumidores sem repetir os erros de
experiências internacionais, como o caso do Texas?
Entre os modelos de liberalização mais amplos do setor
elétrico mundial, o Texas é provavelmente o mais radical — e o mais estudado.
Lá os consumidores residenciais podem escolher livremente seu fornecedor e
existem centenas de opções para tal fornecimento.
São observadas diversas lições positivas que cabem destaque
quando analisamos exclusivamente o caso do Texas, em especial a alta competição
e - por consequência e redução de preços médios aos consumidores, além disso,
uma vitrine de inovação em um setor historicamente conservador.
Por outro lado, é importante destacar situações extremas que
colocaram em risco a prestação de serviço como o ocorrido em 2021, uma onda de
frio extremo levou ao colapso do sistema. Faltavam mecanismos de coordenação e
segurança, e muitos consumidores pagaram contas acima de US$ 5.000 por alguns
dias de consumo. A ausência de um mercado de capacidade ou reserva operacional
mostrou que liberdade sem regulação sólida é risco sistêmico.
A principal lição é clara: liberdade contratual sem
garantias sistêmicas de segurança e resiliência pode gerar ineficiência social
e colapsos evitáveis. A abertura do mercado deve vir acompanhada de marcos
regulatórios robustos, especialmente quando se trata de consumidores
residenciais — menos preparados para assumir riscos de um mercado exposto.
Dentro de tantos casos, condições e regras, a pergunta é
inevitável: quem paga a conta dos postes na frente das nossas casas?
A resposta também é simples: todos nós.
Todo consumidor que utiliza a infraestrutura da
concessionária deve pagar a TUSD — a Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição.
Essa tarifa remunera a prestação do serviço de distribuição, que inclui
operação, manutenção e o retorno sobre os ativos físicos — ou seja, sobre a
Base de Remuneração Regulatória (BRR).
O ponto crítico, porém, não está na existência da TUSD, mas
em como ela é calculada e alocada.
Nosso modelo regulatório foi desenvolvido em um contexto majoritariamente
cativo e, por isso, nem sempre reflete com precisão o uso real da rede por
diferentes perfis de consumidores.
O aumento do número de consumidores migrando para o mercado
livre traz riscos como:
- A
elevação da tarifa para os cativos, se o modelo da TUSD não for revisto;
- A
alocação ineficiente dos custos da BRR, caso os sinais tarifários não
estejam aderentes ao uso real da rede.
A BRR em si não muda automaticamente com a migração de
consumidores. Mas o modelo de tarifação que garante sua remuneração precisa ser
atualizado, para manter a sustentabilidade econômico-financeira da concessão e
a justiça tarifária entre os usuários.
Esse é um dos pontos centrais do debate regulatório atual:
como assegurar que, em um ambiente cada vez mais aberto e dinâmico, a
infraestrutura coletiva continue sendo remunerada de forma justa, eficiente e
proporcional ao seu uso real.
A abertura de mercado é um
fato inevitável e irreversível e cabe a nós, gestores do setor elétrico,
conduzir o tema com inteligência e assertividade. Os próximos passo são claros
quando observamos o horizonte: (i) Abertura do mercado para consumidores
residenciais, com modelos simplificados e proteção ao consumidor; (ii) Tarifas
de energia dinâmicas, baseadas em horários e carga e (iii) Redesenho da
TUSD, para refletir melhor os custos da rede.
O setor evoluiu de forma
significativa em um mercado mais livre e com maior autonomia para o consumidor.
Em paralelo, o conceito da TUSD e sua importância para equilíbrio do sistema
também já se tornou comum. Agora demandamos avanços regulatórios de forma a
normalizar a participação financeira de todos de forma a manter o setor
equilibrado e forte.
E você, como percebe esta
revolução em curso? Quais ações ainda precisa acontecer para implementarmos
integralmente o mercado livre de energia para todos os consumidores?
Comentários
Postar um comentário